É muito comum a visão reducionista dos debates sociopolíticos e éticos
em uma dicotomia radical, como se tudo fosse uma simples questão entre direita
e esquerda ou entre conservadores e liberais. E essa visão empobrecida costuma
ser um bom acúmulo de pólvora para a explosão das paixões. Por isso os debates
sobre política e também sobre bioética facilmente degringolam para discussões
acaloradas. A maioria das pessoas, que não querem se manter neutras, assume um ou
outro partido e passa a enxergar o mundo como dividido entre bons e maus, sendo
que os maus são os que pensam diferente dela.
O nosso contexto cultural atual concede grande valor à liberdade, à
democracia, ao direito, à tolerância. Não há dúvidas que esses são valores que
realmente valem a pena e que a sua defesa representa uma conquista de fato
positiva na evolução histórica da humanidade. Entretanto, como tudo, esses
valores em si mesmo não deveriam ser absolutizados. E aí mora o perigo...
Segundo o relativismo moral, entendido como base filosófica predominante
no Ocidente contemporâneo, a consciência de cada indivíduo tem primazia sobre a
realidade. Isso significa que cada um pode pensar e atuar da forma que
acreditar ser a verdade – “a minha verdade” ou “a sua verdade”, como se costuma
dizer – e deve receber o máximo respeito de todos e do Estado, desde que,
claro, não fira os direitos do outro. Ou seja, o relativismo coloca como standard não
a realidade em si mas a minha concepção da realidade, que passa a ser a minha
verdade.
Nada disso é novidade. Temos séculos de escolas filosóficas que nos
deram os fundamentos para chegar a todas essas concepções. O relativismo não
foi um invento do século XX. Descartes ao colocar em dúvida a realidade, pôs a
carruagem para andar. Kant nos ajudou a ver as leis como arbitrárias, e com
raiva, segundo o nosso modo de ver a estrada, assumimos a nossa forma de
conduzir. Hegel e Marx dividiram o mundo e nos colocaram todos uns
contra os outros, induzindo-nos a ultrapassagens perigosas. Nietzsche e Freud,
por fim, liberaram qualquer amarra de segurança e perdemos totalmente o
controle da diligência.
No campo da Bioética, o relativismo moral parece ser muito bacana e
sensato quando defende que as Leis devem permitir o aborto, todas as formas de
anticoncepção e de fecundação artificial; devem permitir a eutanásia, o
suicídio assistido, as uniões de qualquer orientação sexual etc. Sua linha de
argumentação principal é a seguinte: respeitamos todas as formas de pensar.
Respeitamos quem pensa que todas essas coisas não são corretas, mas quem pensa
como nós deve ter o direito de fazer o que bem entender. Um Estado
verdadeiramente democrático e justo deve garantir nossa liberdade.
Realmente parece tolerante essa forma de pensar. E parece justa.
Contudo, o relativismo, infelizmente, não é nem razoável nem justo. Não
é razoável porque intrinsecamente apresenta uma grande incoerência que o torna
insustentável em si mesmo: se tudo é relativo, se tudo é subjetivo, se a
verdade pode ser que exista mas é inatingível, então o próprio relativismo é
relativo e não pode ser considerado como norma definitiva.
Dito de outra forma: se tudo é relativo, mesmo o relativo por ser
relativo e portanto não será relativo! Parece um jogo, uma falácia, mas não é.
Não é uma falácia usada para desmoralizar o relativismo porque é evidente que
alguma verdade deve existir e pode ser conhecida, ainda que não completamente.
De fato, os mistérios existem e provavelmente são maiores que a nossa própria
capacidade de conhecimento. Todavia, o relativismo, que nega a existência de verdades
e análises absolutas não pode ser ele mesmo absoluto. E se não é absoluto, não
pode ser ele a ditar e justificar toda a nossa vida e toda a nossa sociedade.
Caso contrário, não seria justo.
A questão da justiça é importante: ao absolutizar o direito individual – ou seja, “tudo bem que você pense diferente, mas deixe-me ter o direito de atuar conforme o que eu penso” – há direitos de outros indivíduos e direitos da comunidade que não estão sendo respeitados. Por exemplo, o direito dos filhos que nascem fruto de manipulações, o direito dos que são impedidos de nascer, o direito dos que perdem um parente que foi facilitado a morrer. E mais grave: não se respeita a verdade de quem é o homem. Mas este é outro tema...
Importante é reconhecer que o direito individual não pode ser absoluto,
porque os interesses pessoais são variáveis e contrastantes. O que se espera
das leis, portanto, não é que permita tudo o que cada um quiser fazer mas que
se regule conforme a realidade das coisas. Para isso, o homem contemporâneo,
amante da liberdade, deve apaixonar-se também pela verdade. E buscando sinceramente
a verdade, poderá ser muito mais livre.