30 de julho de 2015

O meu médico de confiança

É proverbial a imagem daquele médico de antigamente, que conhecia toda a família, cada um dos seus membros, e que além do mais era, muitas vezes, um bom companheiro e amigo. Vêm-me à cabeça algumas pinturas que retratam muito bem esse quadro. Gosto de duas especialmente:

The Doctor, Samuel Luke Fildes, 1891
Doctor and Doll, Norman Rockwell, 1929

Até o século XX, os conhecimentos médicos eram muito restritos. A mortalidade infantil era muito alta, a expectativa de vida baixa, a natalidade alta e havia poucas possibilidades de tratamentos realmente curativos. Quase tudo era paliativo: chás e xaropes de ervas, compressas, ventosas, sangrias...

Para se ter uma ideia, a anestesia realmente eficiente começou a ser desenvolvida em meados do século XIX, a antissepsia prévia aos procedimentos médicos – como o simples hábito de lavar as mãos! – também começou a ser utilizada na segunda metade do século XIX e o antibiótico só foi descoberto na primeira metade do século XX. E de lá para cá a Medicina mudou muito. Houve uma revolução técnica e científica, o conhecimento cresceu de modo exponencial porque a ciência molecular mudou tudo para sempre.

Hoje, um único profissional não é mais capaz de abarcar todo o conhecimento médico como outrora. E, por outro lado, a necessidade de desenvolver o conhecimento em cada área, levou a uma superespecialização de muitos profissionais. Às vezes brincamos que há médicos especialistas em tratar a unha do dedinho do pé!

A especialização de fato trouxe muitos benefícios. O primeiro deles é a possibilidade de realmente ampliar o nosso conhecimento geral, quando esse conhecimento é somado com todos os outros. Além do mais, como já dito, realmente não é possível que um médico saiba tudo de tudo.
Por outro lado, a superespecialização gerou também uma fragmentação da visão do paciente. Não é raro, especialmente para o médico geriatra, se deparar com situações realmente problemáticas.

Nossos pacientes frequentemente apresentam múltiplos diagnósticos médicos e são acompanhados por diversos especialistas. Em geral, esses médicos não conversam entre si e cada um se detém a examinar e tratar somente o órgão ou sistema de sua especialidade. O indivíduo nessas circunstâncias passa o mês inteiro indo aos médicos, peregrinando de consulta em consulta com o cardio, o pneumo, o reumato, o dermato, o ortopedista, o oftalmo, o gineco, o uro, o neuro, o endocrino, o vascular... Cada profissional acrescenta os seus remédios e não raras vezes o tratamento prescrito por um, interfere no tratamento do outro. E quando o paciente termina de fazer todos os exames pedidos por todos eles, já é hora de recomeçar um novo ciclo de consultas! Uma verdadeira confusão.

O médico geriatra, não é exatamente como o médico de família de antigamente porque nós não cuidamos das mulheres grávidas, nem das crianças da casa. A conformação da família também não é mais a mesma. Atualmente há muito mais adultos e idosos nas famílias do que naqueles tempos. E para esses, adultos e idosos, o geriatra pode, sim, fazer toda a diferença. O geriatra é também um clínico geral e, portanto, está apto para cuidar dos adultos de todas as idades além dos idosos. E um dos papéis mais importantes do geriatra, especialmente para aqueles pacientes com múltiplos problemas de saúde e que necessariamente precisam ser acompanhados por vários especialistas, é o de gerenciar o tratamento, olhando o paciente não como uma somatória de órgãos e sistemas, mas como uma pessoa. Essa é a tal “visão holística”, muito própria da nossa especialidade.

Frequentemente na minha prática profissional, sou procurada com para essa missão: fazer entender o que realmente acontece com o paciente e explicá-lo de modo acessível para a família. Fazemos a ponte entre os diversos médicos e, quase sempre, podemos “limpar a prescrição”: não é incomum que um remédio esteja sendo usado para tratar os efeitos colaterais de outro e que, na realidade, este nem seja estritamente necessário! Por isso, ao contrário do que muitos imaginam, o geriatra não é o médico que vai prescrever “umas vitaminas”. Antes, ao contrário, é o médico que vai tirar o excesso de vitaminas para centralizar o tratamento no que realmente importa, diminuindo também o número de consultas.

Muitas vezes, também estabelecemos com o paciente e com a família uma relação muito próxima, já que os estados delicados de saúde exigem um acompanhamento mais fino e, amiúde, inclusive por meio da visita domiciliar. E assim, é natural que surjam vínculos de confiança que se estendem para aquelas situações em que simplesmente precisamos de uma opinião amiga ou de um médico que venha à nossa casa. Eu noto muito isso: quem não desejaria ter à mão um médico para lhe perguntar tantas questões sobre saúde, próprias e das pessoas da família?

Por isso, aqueles que pensam que a Medicina necessariamente se tornou uma relação fria, ou um negócio mercantil, não sabem que aquele médico companheiro e amigo, para quem sempre se pode recorrer, ainda existe por aí. E a esse, realmente podemos chamar de “o meu médico de confiança”.

Obs: neste texto eu me refiro ao médico geriatra porque é a especialidade com a qual eu tenho experiência. Isso não quer dizer que não haja médicos próximos e companheiros de outras especialidades!