20 de maio de 2014

Relativismo moral e Bioética


É muito comum a visão reducionista dos debates sociopolíticos e éticos em uma dicotomia radical, como se tudo fosse uma simples questão entre direita e esquerda ou entre conservadores e liberais. E essa visão empobrecida costuma ser um bom acúmulo de pólvora para a explosão das paixões. Por isso os debates sobre política e também sobre bioética facilmente degringolam para discussões acaloradas. A maioria das pessoas, que não querem se manter neutras, assume um ou outro partido e passa a enxergar o mundo como dividido entre bons e maus, sendo que os maus são os que pensam diferente dela.

O nosso contexto cultural atual concede grande valor à liberdade, à democracia, ao direito, à tolerância. Não há dúvidas que esses são valores que realmente valem a pena e que a sua defesa representa uma conquista de fato positiva na evolução histórica da humanidade. Entretanto, como tudo, esses valores em si mesmo não deveriam ser absolutizados. E aí mora o perigo...

Segundo o relativismo moral, entendido como base filosófica predominante no Ocidente contemporâneo, a consciência de cada indivíduo tem primazia sobre a realidade. Isso significa que cada um pode pensar e atuar da forma que acreditar ser a verdade – “a minha verdade” ou “a sua verdade”, como se costuma dizer – e deve receber o máximo respeito de todos e do Estado, desde que, claro, não fira os direitos do outro. Ou seja, o relativismo coloca como standard não a realidade em si mas a minha concepção da realidade, que passa a ser a minha verdade.


Nada disso é novidade. Temos séculos de escolas filosóficas que nos deram os fundamentos para chegar a todas essas concepções. O relativismo não foi um invento do século XX. Descartes ao colocar em dúvida a realidade, pôs a carruagem para andar. Kant nos ajudou a ver as leis como arbitrárias, e com raiva, segundo o nosso modo de ver a estrada, assumimos a nossa forma de conduzir.  Hegel e Marx dividiram o mundo e nos colocaram todos uns contra os outros, induzindo-nos a ultrapassagens perigosas. Nietzsche e Freud, por fim, liberaram qualquer amarra de segurança e perdemos totalmente o controle da diligência.

No campo da Bioética, o relativismo moral parece ser muito bacana e sensato quando defende que as Leis devem permitir o aborto, todas as formas de anticoncepção e de fecundação artificial; devem permitir a eutanásia, o suicídio assistido, as uniões de qualquer orientação sexual etc. Sua linha de argumentação principal é a seguinte: respeitamos todas as formas de pensar. Respeitamos quem pensa que todas essas coisas não são corretas, mas quem pensa como nós deve ter o direito de fazer o que bem entender. Um Estado verdadeiramente democrático e justo deve garantir nossa liberdade.

Realmente parece tolerante essa forma de pensar. E parece justa. Contudo, o relativismo, infelizmente, não é nem razoável nem justo.  Não é razoável porque intrinsecamente apresenta uma grande incoerência que o torna insustentável em si mesmo: se tudo é relativo, se tudo é subjetivo, se a verdade pode ser que exista mas é inatingível, então o próprio relativismo é relativo e não pode ser considerado como norma definitiva.

Dito de outra forma: se tudo é relativo, mesmo o relativo por ser relativo e portanto não será relativo! Parece um jogo, uma falácia, mas não é. Não é uma falácia usada para desmoralizar o relativismo porque é evidente que alguma verdade deve existir e pode ser conhecida, ainda que não completamente. De fato, os mistérios existem e provavelmente são maiores que a nossa própria capacidade de conhecimento. Todavia, o relativismo, que nega a existência de verdades e análises absolutas não pode ser ele mesmo absoluto. E se não é absoluto, não pode ser ele a ditar e justificar toda a nossa vida e toda a nossa sociedade. Caso contrário, não seria justo.

A questão da justiça é importante: ao absolutizar o direito individual – ou seja, “tudo bem que você pense diferente, mas deixe-me ter o direito de atuar conforme o que eu penso” – há direitos de outros indivíduos e direitos da comunidade que não estão sendo respeitados. Por exemplo, o direito dos filhos que nascem fruto de manipulações, o direito dos que são impedidos de nascer, o direito dos que perdem um parente que foi facilitado a morrer. E mais grave: não se respeita a verdade de quem é o homem. Mas este é outro tema...

Importante é reconhecer que o direito individual não pode ser absoluto, porque os interesses pessoais são variáveis e contrastantes. O que se espera das leis, portanto, não é que permita tudo o que cada um quiser fazer mas que se regule conforme a realidade das coisas. Para isso, o homem contemporâneo, amante da liberdade, deve apaixonar-se também pela verdade. E buscando sinceramente a verdade, poderá ser muito mais livre. 

A triste história de Piera e a eutanásia

Faz um ano que foi lançado na Itália, por uma Associação conhecida por suas atividades radicais, um vídeo que tinha o propósito de chocar. Era a história de Piera, uma senhora de 76 anos que tinha recebido o diagnóstico de um câncer de fígado em estágio avançado e incurável. Piera conta que “morreu” no dia em que recebeu o diagnóstico de incurabilidade da sua doença. E em três minutos, enquanto faz as malas, explica que, visto que não havia possibilidades de cura e que iria encontrar o sofrimento no caminho, decidiu ir à Suíça para acabar com tudo. Piera deixa claro no vídeo que não queria mais o sofrimento, que não servia para nada. Por isso Piera, e só ela, tinha o direito de decidir sobre a sua vida e a sua morte.

“A escolha de Piera”, nome do pequeno filme, foi exatamente essa. Viajou a uma cidadezinha próxima de Zurique e lá escolheu o momento exato para colocar um ponto final na sua vida. Deixou em herança aquele filme-testemunho para a campanha que busca a legalização da eutanásia na Itália.
Piera Franchini (1937-2012) decidiu ir à Suíça e recorrer ao suicídio assistido
Piera dizia amargurada no vídeo: “Os outros caminhos não me levam à cura, não me levam a uma vida diferente, não me levam a lugar nenhum. Levam-me sempre e de qualquer forma ao fim da vida. E então, por que não escolher o caminho menos turbulento, que mesmo assim me dá medo? Mas não tenho dúvidas. Não quero mais sofrer. O direito ao sofrimento é um fim em si mesmo, um sofrimento que não beneficia a ninguém. A quem beneficia o meu sofrimento ou de tantos outros? Para quem serve? Por que motivo eu devo sofrer até morrer?! Sofre-se até que se morre. Quem se pode dar o direito de dizer ou de fazer isso?! Sou eu, eu, eu, a minha vida, a minha morte, eu decido sobre mim”.

São palavras fortes. Mas de qualquer forma, mais forte é a solidão de Piera. Ela decidiu algo muito grave, de forma solitária. É verdade que todo mundo morre sozinho. É inevitável. A morte, como a vida, só cada um pode saborear e percorrer. Mas a solidão do suicida, especialmente do suicida assistido, parece ser mais aguda e dolorosa. Não porque Piera não tenha podido contar com a proximidade dos seus familiares e amigos porque se viu “obrigada” a ir à Suíça para morrer. Mas porque quem procura ajuda para morrer, não deixa de estar pedindo ajuda para viver, mesmo que de forma inconsciente.  Todos os seres humanos têm necessidade de compartilhar a vida. E todos necessitam viver e morrer acompanhados.

             Parece que Piera, a pesar da ajuda que recebeu para ir à Suíça, não podia contar com ninguém que lhe dissesse “fique aqui o tempo que for, eu estarei com você, eu cuido de você”. A eutanásia é sempre uma decisão de uma miserável solidão: de quem não quer incomodar os outros, de quem tem medo de sofrer fisicamente sem ter o alívio de uma presença realmente gratuita e voluntária, de quem a ama. É por isso que a eutanásia é sempre uma derrota, do indivíduo e da sociedade. Derrota do indivíduo que se vê impotente diante do presunto monstro da morte dolorosa. Derrota da sociedade que não pode ou não quer oferecer ajuda a quem se sente débil e marginalizado pelo sofrimento de uma doença.

As mesmas mãos amigas que ajudaram Pietra a ir à Suíça ou que a filmaram pela última vez, não eram amigas o bastante para acolhê-la nesses seus piores dias. Piera estava sozinha a pesar da presença de alguns que compartilhavam da sua convicção de procurar uma “boa morte”. Naquele momento em que um se sente sozinho e desesperado, apavorado pelo porvir, encontra na indústria da eutanásia, o impulso que lhe faltava: “Sim, o seu sofrimento é inútil. Acabe com a sua vida que é melhor para você e para aqueles que ficam”.

Mas existem alternativas! Talvez tudo possa ser diferente se aquele que se encontra nessa situação encontra o acolhimento daqueles que praticam os Cuidados Paliativos e pode, então, ouvir e sentir e tocar aquilo que dizia Cicely Saunders, uma das fundadoras do movimento Hospice: “Você é importante porque você é você. E você é importante até o fim da sua vida. Faremos todo o possível não só para ajudá-lo a morrer em paz, mas também para fazer você viver até o momento de morrer”.[1]
Cicely Saunders (1918-2005): a médica inglesa fundadora do Movimento Hospice de Cuidados Paliativos



[1] “You matter because you are you, and you matter to the end of your life. We will do all we can not only to help you die peacefully, but also to live until you die”